O sonhador, o reacionário e a mulher vitimada
O impacto da releitura de Três Objetos, de Teresa de La Parra
Olá, queridos amores da Vértebra Latina!
Me desculpem o sumiço, a vida andou me atropelando por aqui. Bienvenidos à Venezuela novamente, esse país do qual sabemos tão pouco sobre sua literatura, especialmente a de suas mulheres. Falar a partir daqui também será sobre falar mais uma vez de memória, só que dessa vez de um jeito diferente. Ai, eu já nem disfarço né, sou obcecada mesmo e voltar a esse texto por meio da parceria da Arte & Letra me deixou pra lá de contente.
Para a corpa de textos pensei em falarmos da escrita de mulheres venezuelanas. Acho que vai ser divertido. Obrigada por estarem aqui, afinal, a vida é mais bonita se compartilhada.
Vem cá, me dá tua mão e vamos mergulhar juntos!
Ninguém mergulha no mesmo rio duas vezes, por que será?
A célebre frase de “ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes” é do Heráclito e você certamente já leu sobre isso, afinal, não faltam teses que pensem sobre ela. Não se pode banhar de novo no mesmo curso de água porque ele muda e se renova, mas a bem da verdade é que a gente se transforma também. Coisa estranha seria se a vida e a nossa compreensão de mundo permanecessem a mesma.
Li Três Objetos, da Teresa de La Parra, há uns bons anos e lembro que fiquei curiosa com o título na mesma medida em que soube que ela era venezuelana. Ainda não existia a Vértebra Latina ou qualquer intenção nisso. Estranhamente, hoje eu sei que não estava preparada para essa obra.
Sendo bem sincera, não bateu legal, eu achei uma grande doideira a Teresa pensar como seria se objetos ganhassem vida e, fazendo uma investigação pela internet, acabei descobrindo que esses contos que estão no livro eram realmente um projeto dela de deslocar o olhar e repousá-lo para sobre seres aparentemente inanimados para ver como eles se comportam.
Teresa queria explorar a realidade, mas as pessoas enquanto personagens não eram suficientes para dar conta dela. Talvez nem a realidade daria conta de si mesma porque simplesmente é preciso transcender e compreender as muitas camadas sociais a partir de outras perspectivas. Tudo aquilo me parecia, em princípio, psicodélico no sentido das escolhas feitas por ela, sugestivo e um tanto quanto distanciado de mim.
Acontece que não se banha nas mesmas águas duas vezes, literatura é rio cambiante, desejo incansável de explorar a palavra. E aquela Pilar também não existe mais. Foi realmente o estudo sobre a memória e tudo que vem dele que me trouxe de volta para esse texto de outras formas. E, na moral, sou grata.
Certamente Teresa foi muito criticada no seu tempo, especialmente por ser mulher - ainda aristocrata - que ousava em suas narrativas e na sua postura diante da sociedade, e ainda que hoje talvez seja um dos nomes mais importantes da literatura de seu país, mas por aqui pouco conhecida. Assim, eu sentia que precisava ser acarinhada por ela.
pelas camadas e caminhos de três objetos
Três Objetos volta com a força de uma parceria muito amada por mim com a Arte e Letra. E volta de uma maneira muito interessante. Teresa de la Parra era uma mulher na verdade europeia, mas a sua literatura ganha potência na Venezuela, lugar onde ela viveu por vários anos e escolheu ter uma nova cidadania. Isso, por si só, é muito importante.
Quando a Arte & Letra resolveu publicar esse livro, em 2019, não me parece ter sido uma tarefa fácil. Os três contos que contam no volume foram escritos entre 1915 e 1923 e publicados em 1982, não estavam em princípio reunidos. Viu-se ali um desejo de fazer essa obra acontecer, a ousadia de olhar para esse conjunto e dizer: uau, isso vale muito a pena!
E me emociona sabe, porque estamos falando de América Latina, de inserir o Brasil dentro desse contexto latino-americano também por meio do mercado editorial, da publicação e disseminação dessas obras. Isso, pra professora de literatura e crítica literária, é bonito até. Além disso, eu amo como a Arte & Letra capricha nos projetos e envolve o leitor no texto.
Três objetos nos mostra três histórias muito diferentes entre si a respeito de objetos que possuem vida, sentimento e contradições. Amo que os protagonistas desse livro nos mostrem perspectivas e posicionalidades diferentes. Temos, portanto, um sonhador, um reacionário e uma mulher vitimada. Todos disputando discursos e de certa forma sedentos por existir.
E para garantir isso, eles vão aos limites dos seus desejos, nas fronteiras das suas existências, tentando o tempo todo captar o leitor e fazê-lo de alguma forma acreditar ou se vincular às suas histórias. E o que é isso senão a maneira como lidamos com a sociedade? Não seríamos nós também personagens dentro da narrativa do cotidiano?
Impressiona bastante que esses contos tenham sido escritos no início do século passado, e tenham temáticas tão atuais. O maior conto do livro nos traz a história do O Ermitão do Relógio, Frei Barnabé, que vive dentro de um cuco. Ao longo das quase 30 páginas acompanhamos como ele passa a questionar a sua realidade, as normas pré-definidas para a sua vida e percebe que continuar enclausurado em seu quartinho não faz o menor sentido: ele quer viver para além daquilo que o aprisiona. A partir de um elefante pra lá de cara de pau ele resolve viver uma aventura e é aí que Barnabé vai entender que a vida lá fora não é assim tão simples.
Já em O prodígio da balança de cartas encontramos um gnomo de couro que encarna a figura de um homem soberbo, irritante, reacionário e que simplesmente trata a todos à sua volta com imenso desdém. Um doce se você já cruzou com um desses! A duras penas, e em seu posto de prestígio, tal qual uma rainha de copas, ele segue do alto de sua balança de cartas destilando o próprio veneno que pode também ser sua ruína e deslumbre. Acontece que a vida é cambiante né, tudo muda.
No último conto, a História da senhora partícula de pó, mas uma vez achei a Teresa ousada e visionária. Aqui, ela nos conta a história dessa bailarina de luz, encanto e desejo pelos olhos de um homem como tantos outros: abusivo. Em seu tempo, a escritora apontou para os perigos de relacionamentos perversos e denunciou como, infelizmente, homens acham que mulheres são suas propriedades de maneira tão naturalizada como a qual estamos convivendo com a misoginia ao longo dos séculos. Ela se autodeclarava feminista moderada, e isso de aparece um pouco aqui.
Baita textos, com muita crítica social, usando as ferramentas e armas ao seu dispor, Teresa de La Parra nos entrega histórias que mostram o caminho da memória dos objetos da mesma maneira em que a subverte. Se por um lado sabemos que esse tipo de memória nos faz acessar tempos outros de nossas existências, lembranças esquecidas no tempo, ela usa desse recurso para mostrar disputas sociais, meandros discursivos opressores, violentos que pautam as relações da mesma forma que não transforma nada disso em panfletário (ainda que eu goste de literatura engajada bastante também).
Aqui, interessa o que está dito nas entrelinhas, o texto por dentro do texto, as muitas camadas e caminhos que nos levam a pensar em problemáticas individuais dessas personagens se abrem em coletivo. É um estilo único de escrita que me envolveu imenso. Sinceramente, eu achei essa segunda leitura do livro arrebatadora mesmo. E isso me deixou bem feliz porque consegui ver suas nuances que hoje traduzem bem mais a maneira como eu me relaciono com a literatura
Fiquei me perguntando várias vezes: e se eu pudesse escrever algo nesse sentido, como seria? Que objeto escolheria para traduzir questões importantes do nosso tempo? Especial que em um universo de microcosmos a gente consiga dar vazão para questões muito maiores. Onde pequenas coisas possam dar corpo a grandes questionamentos e revoluções.
Pensar que objetos têm memórias singulares e amplas é uma grande possibilidade de ampliar debates porque a posicionalidade, a perspectiva diante das demandas, fraturas e situações limite parecem perder as amarras que nos prendem quando tratamos unicamente de gente de carne e osso (mas aqui talvez eles tenham também). Essa forma de metaforizar o mundo se verte reveladora e libertadora também.
Dito isso, eu só posso te recomendar que leia imensamente esse livro. E que se permita um pouco de psicodelia e entrega. Tal qual como Sherazade que contou histórias para conseguir viver, seguimos contando causos para dar conta da vida e se deixando contaminar pela oralidade, que é o berço de tantas sabedorias. E os objetos, por que não?, reivindicam seu lugar no mundo.
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⚡ Raio-X
Escritora: Teresa de La Parra
Editora: Arte & Letra
Tradução: Iara Tizzot
🌸📚 Sobre a escritora
Teresa de La Parra é venezuelana de Caracas (nascida na França). Jornalista e escritora, também era uma feminista moderada e chegou a dar palestras na Colômbia sobre a luta e os direitos das mulheres. No Brasil, tem publicadas as obras Ifigênia (Carambaia) - seu livro de maior sucesso; Memórias de Mamma Blanca (Oficina Raquel) e Três Objetos (Arte & Letra).
☠️💜 Corpa de dicas e ideias
A incrível história de Teresa de La Parra e o dom de ignorá-la
Uma proto-feminista na Venezuela
Resenha do fantástico Noite em Caracas, da Karina Borgo
Resenha do incrível Continentes de dentro, da Incrível María Elena Morán
Trânsitos cotidianos, de Lívia Esmeralda Vargas González (um desejante)
Para entender um pouco mais sobre memória dos objetos, o livro Memória: personagens lugares e objetos
Nos vemos na próxima! Gracias por todo!
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