Prender a respiração, brincar com o desconhecido e os perigos à espreita
98 segundos sem sombra, da Giovanna Rivero
Prender a respiração, brincar com o desconhecido e os perigos de homens perversos
98 segundos sem sombra, da Giovanna Rivero
Olá, queridos amores da Vértebra Latina!
Nosso papo hoje é na Bolívia e um pouco sobre essa geração de mulheres latinas extremamente interessadas em terror, insólito, gore e medo. Uma rápida volta ao passado com as Ursuliñas. E o quanto amo tudo isso.
Na corpa de hoje alguns livros de escritoras bolivianas. Uma pequena agenda de sp por esses dias. Vai aqui também o meu baita agradecimento a todo mundo que desejou melhoras ao meu menino lobo, Tito, meu filho lindo.
Vem cá, me dá tua mão e vamos mergulhar juntos!
Giovanna Rivero e essa nova geração de latinas pulsantes
Me apaixonei pela Giovanna Rivero quando li Terra fresca da sua tumba, um livro, pra mim, bem especial. Gostei de como ela construiu os contos, a coisa da terra como pertencimento e desterro, a ampliação do protagonismo feminino, as muitas camadas de uma Bolívia até então desconhecida pra mim tanto em sua materialidade quanto em sua literatura.
De todos, “Quando chove parece humano” me deu um nó na cabeça e me mostrou essa colonização asiática forte no país Hermano que eu não tinha idea. enfim, da pra ler a minha resenha sobre esse livro é só clicar aqui.
Muito louco saber que temos vários entrelaçamentos. Sim, eu e a Giovanna. Foram as minhas amigas do Ursuliñas que me mostraram pela primeira vez algo feito por ela. A teoria dos 6 graus do Kevin Bacon (alou adolescência na década de 90) é real e o que elas me indicam eu lei com o peito cheio de afeto. Grata surpresa, baita texto. Gostei bastante.
Alguns dizem que a Giovanna, Mônica Ojêda, María Fernanda Ampuero, Samanta Schweblin, Pilar Quintana e toda essa nova geração de escritoras latinas fodas são herdeiras do boom latino-americano e estão relendo o realismo mágico. Eu serei polêmica e direi: não.
Me cansa pensar que mulheres precisem de um lastro masculino, ainda que primoroso, para existirem. Eu amo Vargas Llosa, Borges e acho Rayuella – do Cortázar - um dos livros mais loucos e belos que já li. No entanto... sem desmerecer os caras, para mim, elas estão fazendo outras coisas. Ressignificando o mundo à sua maneira. Trazendo violências de gênero, raça e sexualidade, criticando as estruturas coloniais.
E sem qualquer modéstia digo que não vamos ter nome para isso agora. Esse é um papo da crítica para daqui a muito tempo. O futuro que lide com a tarefa de compreender em termos teóricos o que elas fazem hoje. Mania de querer se apressar e dar nome para as coisas.
Para além de tentar colocar em caixinhas, há que se querer ouvi-las acima de tudo. O lance está aqui. Elas gritam, publicam, borram fronteiras a plenos pulmões. Então que sejam lidas, escutadas, estudadas, reverberadas. E ainda bem que o mercado atendeu aos nossos clamores e tem publicado cada vez mais suas obras.
O que facilita muito o meu trabalho e me transborda o coração de amor também.
Para além de olhares reducionistas, o que estamos vivendo é um momento de profusão que nos inscreve e insere em uma cosmopercepção cada vez mais potente de uma América Latina que não quer se deixar apequenar. Que delícia viver nessa espiral do tempo!
Sei que as vezes parece repetitivo, falo muito disso aqui, mas é real o quanto estamos vivendo um momento diferente.
Genoveva Bravo Genovés, uma protagonista cheia de camadas
Nessa altura, vocês já devem percebido que sou uma emocionada (e pra mim crítica tem a ver com paixão). Bom, me encanta muito que Giovanna Rivero goste de falar não apenas da Bolívia, mas de suas cores, de suas dicções, de suas especificidades e seus interiores. E eles são múltiplos.
Eu até queria falar da parte do livro em que ela explica o título, que é belíssima, mas já tem muito spoiler nessa resenha, então você vai lá, lê e me conta o que achou depois. Ah, aliás, esse é o momento em que se você quiser parar de ler, tá liberado! Tem gente que não gosta de spoiler, mas se você, como eu, ainda lê alguns livros pela milionésima vez por que tudo bem não ser inédito, segue comigo.
Aqui encontramos Genoveva Bravo Genovés, uma adolescente de uma pequena cidade no interior da Bolívia que tem de lidar com os dramas quase básicos da fase da vida em que se encontra. Família disfuncional, falta de diálogo, um colégio de freiras extremamente castrador e colegas, as “Madonas Friends” muito muito violentas, bem no estilo garotas malvas em requintes de crueldade.
No entanto, Gen também não é uma menina comum. Ela tem muitas camadas: sofre, ri, se diverte, tem seus dilemas e arquiteta suas próprias vilanias. Ou seja, não estamos diante de uma protagonista plana, extremamente bondosa, digna de contos de fadas. Muito pelo contrário, é nas dualidades que ela cresce.
Giovanna é tão maravilhosa no que faz que, por vezes, eu quis esfregar a cara da própria Gen na brita quente (risos de nervoso). Especialmente na relação dela com a Lorena Vacaflor a quem ela dá terrível alcunha de “A gorda”. Caramba, Lorena também é uma menina fraturada, solitária, esquecida e responde às violências do mundo com agressividade, e a relação que inicialmente era muito complexa vai se transformando, apesar e a revelia da própria protagonista.
Por outro lado, acho importante como a escritora se dedica a mostrar essas contradições e violências como a gordofobia, a misoginia, e as estruturas sociais extremamente rígidas que levam essas meninas a competirem entre si de maneira tão desproporcional. Isso existe, é preciso desnudar.
E é interessante por que 98 segundos sem sombra vai bastante linear até a metade do livro. Somos envolvidos por esse certo marasmo na vida da protagonista, esse desejo profundo de ir embora, fugir. Essa vontade enorme de ser acolhida e escutada, de chamar atenção de quem está à sua volta.
A escritora chega a encenar uma relação superpotente da menina com Inés e eu esperava que isso se desdobrasse de outra forma. E é então ali pelo meio que surge a figura enigmática do mestre e tudo tudo muda.
Genoveva, desde o início nos dá duas pistas importantes sobre si. Gosta muito de escrever e registrar sua vida, o que é muito especial porque nos faz pensar sobre como esse livro chega à nós com uma protagonista tão afeta a literatura, leitora sagaz de Anne Frank, que tem tiradas ótimas pela perspectiva do literário e se compromete com o leitor de maneira muito íntima em revelar sua percepção de mundo.
O segundo dado é que ela já possuía muito interesse em magia, bruxaria, especialmente na figura dessa avó, Clara Luz, brutal, profunda conhecedora das ervas, que mal falava espanhol e era uma mulher insubmissa. Clara Luz é para Genoveva uma inspiração, um caminho, uma trilha, ao mesmo tempo em que gera medo e desejo. Vista por muitos como louca, encontra na neta seu legado.
E porque essas coisas todas vão ser importantes, porque são pistas que vão sendo dadas no texto pra que a gente monte o quebra-cabeça dessa relação com o mestre. Gen quer ir sabe que a vida é muito mais do que se apresenta, tem sonhos e desejos gigantes, mas está completamente perdida, sem orientação, referência e com quem dialogar.
E esse é um terreno fértil para que oportunistas se aproximem. E eu achei esse cara bem oportunista. Depois vocês me contam como se sentiram sobre isso. E as viradas que o livro dá, de maneira muito surpreendente vão tecendo essa nova teia de relato. É quase como se o livro cindisse. Temos uma história antes e uma história depois desse encontro.
Particularmente, acho que Gen se consagraria uma bruxa apesar dele, mas é na contradição eu ela cresce não é mesmo? Nos limites entre descobrir seus dons e forças na bruxaria, atrelada ao encantamento com essa figura enigmática somos levados a uma trama que tem um fim acelerado. Então, por mais que eu gritasse: “garota, sai daí!”, a literatura essa danada se impôs.
De alguma forma e dadas as muitas proporções, me lembrou de uma personagem de Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga, seduzida pelo desejo de conhecimento, por sabedorias poderosas e por discursos potentes. No fim, quem sou eu para julgá-las já que eu sempre fui super interessada por tudo isso também.
98 segundos sem sombra é um livro que me intrigou especialmente por sua construção. Essa ideia de uma obra bipartida que se transforma e renova. Tomei um tempo e tomei um ar para entender as suas camadas e acho ótimo que seja assim.
Acredito fortemente que cheguei ao livro com outras expectativas, por algum motivo achava que seria um romance de formação e não é. Encontramos a protagonista apenas em uma parte e ainda que se vislumbre um futuro e que ela “repovoará a terra” não sabemos o que virá.
Aqui, Giovanna se aventura por outras paragens. Traz elementos que aparecem em outros livros seus, como a nuances boliviadas, o xamanismo, os conhecimentos das ervas e das terras, essas figuras enigmáticas e duais. A ideia de que é preciso conjurar também por palavras e muita pitada de insólito ali onde a realidade não dá conta. Elementos que eu adoro em sua literatura e que acho que deixam um lastro quase como uma marca registrada.
Por algum motivo, 98 segundos sem sombra não me pegou como Terra fresca da sua tumba, ainda que se mostre complexo, instigante e em muitos momentos uma escrita que desconforta e desloca. Talvez porque eu curta mais os contos enigmáticos, insólitos e pungentes? Pode ser, mas estou ansiosa para ler Pra te comer melhor, que saiu pela Peabiru.
Agora que o Brasil conhece as maravilhosidades que a escritora dá conta de fazer em seus textos, espero que mais e mais obras sejam publicadas em português. Sobre isso, obrigada, Incompleta e Jandaíra, por nesse esforço coletivo terem trazido essa mulher pela primeira vez para o nosso país por meio da literatura. É maravilhoso ver uma escritora como Giovanna Rivero ganhando tanta projeção por sua potência.
E ah, o livro virou filme. O que achei o máximo porque a história rende pra caramba e é maravilhosa mesmo, mas isso é papo para outra newsletter.
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⚡ Raio-X
Escritora: 98 segundos sem sombra
Tradutora: Raquel Dommarco Pedrão
Editora: Incompleta e Jandaíra
📚 Sobre a escritora
Giovanna Rivero é boliviana de Montero, escritora e doutora em Literatura Hispano-americana Foi professora na Universidade Privada de Santa Cruz de la Sierra. Tem diversos prêmios e no Brasil estão publicados os livros de contos Terra fresca da sua tumba (Incompleta; Jandaíra 2021) e Pra te comer melhor (Peabiru, 2022) o romance 98 Segundos sem sombra (Incompleta; Jandaíra, 2022), e o conto Cachorras e soldadinhos, na Revista Puñado nº 3 (2018) - sim, aquela que tanto amo.
🌸Pilar Bu em SP
se liga na programação cheia de gente linda e sincera
Aqui a bruxaria vai ser com a Carol Casati do Encruzilinhas na Gato sem rabo
E aqui vamos hablar muito com os amigos lindos Ana Rusche, Paula Carvalho e Vini Barbosa, do Latina Leitura. Na Livraria da Tarde.
Por fim, quando em Ribeirão, beba cerveja. Eu sendo plena nas minhas férias merecidas tomando uma Odoyá Ipa da Cervejaria cigada Macumba. Laroyê meu povo de axé.
☠️💜 Corpa de dicas e ideias
Minha resenha sobre Voces brilham no escuro. da Liliana Colanzi
A composição do sal, da Magela Baudoin pela Arte e Letra
Huáscar, seus cabelos e as raízes, da Jobana Moya
Partitura do tempo, da Kori Bolivia
Nos vemos na próxima! Gracias por todo!
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uau, vou atrás de 98 segundos agora. obrigada, pilar 🩷
Bela resenha. Mais um para a lista...amo essa geração de escritoras latinas e gostaria de ver uma resenha à altura da minha preferida delas, a maravilhosa Laura Restrepo.