Violência, subversão e crítica social na Argentina periférica 🇦🇷
Nossa senhora do Barraco, um acontecimento potente de Gabriela Gabezón Cámara
Olá, queridos amores da Vértebra Latina!
Que tal viajarmos para uma Buenos Aires que escapa dos cartões postais? E se eu te dizer que Gabriela Cabezón Cámara nos guiará pelos becos e vielas de um território potente de resistência? Aperte o cinto, dessa vez não vai faltar subversão e ousadia com Qüity, Cléo e todos os corpos dissidentes de Nossa Senhora do Barraco.
Na corpa de textos de tudo um pouco, tal qual esse livro arrebatador. Era tudo verdade sobre esse livro e eu estou eufórica. Eu sou a Pilar Bu, criadora e curadora da Vértebra Latina.
Vem cá, me dá tua mão e vamos mergulhar juntos!
Gabriela Gabezón Câmara, a escritora Argentina que ama subverter regras
Se você gosta de literatura Argentina contemporânea ou é ligada nos movimentos feministas daquele país, pode ser que já tenha ouvido falar dessa escritora.
Mulher Lésbica, feminista, ativista pelos direitos das mulheres e lgbts, uma das lideranças do movimento Ni una a menos, se tem uma coisa que Gabriela ama é usar a literatura para perfurar estruturas de opressão e questionar as tradições e saberes da Argentina e da América Latina.
Ousada, em seu primeiro livro publicado no Brasil, As aventuras de China Iron, ela simplesmente pegou um dos maiores mitos fundadores da Argentina e fez uma releitura tão disruptiva, que abalou as estruturas e a levou a patamares de um grande nome do seu tempo.
Sobre As aventuras de China Iron você confere a minha resenha aqui, mas vamos rememorar. Martim Fierro foi um grande herói nacional, um típico gaúcho dos pampas e, como tal, um homem racista e perverso que foi eternizado pela história.
No livro de Gabriela, a narrativa original é subvertida e passa a ser contada por sua esposa, China, uma mulher atravessada por tragédias, constantemente agredida e violentada pelo marido.
A grande sacada da escritora é mostrar como essa mulher toma posse de sua vida com o sumiço dele e transforma a ode à fundação do país em uma epopeia lgbt em que todos são fluidos e cambiantes.
Quanto mais adentra no interior dos pampas, mais a protagonista constrói a si mesma. Um livro que arrasta multidões, mas que também causa bastante estranheza e isso é maravilhoso!
Em Nossa Senhora do Barraco, Gabriela segue afiadíssima e disposta a esmiuçar não os pampas, mas a periferia de Buenos Aires de um jeito que muitos de nós nunca viu.
Uma Buenos Aires para além dos cartões postais, que escapa da tranquilidade de bairros badalados como Palermo e Recoleta, e faz morada em sua pulsante experiência afrodiaspórica propositalmente esquecida e negligenciada pelo projeto político de país modulado pela Argentina.
Qüity, Cléo e a literatura como ferramenta de transformação social
Qüity é jornalista policial investigativa, amiga do policial Dani, viciada em drogas, que por trás de todo seu carisma é uma mulher extremamente em conflito e despertencimento consigo mesma. Sua vida muda completamente quando ela resolve ir à El Poso fazer uma reportagem sobre Cléo, uma mulher trans, prostituta, que conversa com nossa senhora .
Sozinha e sem caminho, Qüity encontra família, acolhimento, jeito de existir e pertencimento naquele espaço de resistência potente que periga desaparecer. Isso porque, desde o ínicio, sabemos que a favela é um caldeirão em ebulição, espreitado pelo projeto higienista e perverso de desapropriação e despejo que ameaça a vida da comunidade.
Em meio à violência brutal, Cléo acendeu como líder xamânica e comunitária desse território periférico desde que passou a ouvir Nossa Senhora e ouvir seus desígnios. Conversando com ela em espanhol medieval, Cleópatra passa a mediar conflitos e pautar suas ações a partir do que “a mãe de deus” lhe confidencia.
E aqui devo dizer que Gabriela é novamente perspicaz, pois, na mesma medida em que tece críticas às forças de opressão do estado, também modula discursos que versam sobre a religiosidade como ferramenta de controle e ruptura dos discursos e dos corpos. De todo jeito, o alvo sempre será o sujeito periférico, preto e pobre que está precarizado e violentado nas bordas da cidade.
Elena, Wan, Ruiva, Torito, Kevencito, Jonás e outras personagens que circundam as duas vão nos apresentado as dinâmicas desse território como um espaço para além das violências, que também produz cartografias de afeto, cuidado e coletividade. Assim, o carinho e as relações entre as pessoas caminha ao lado dos traumas e tragédias que os alcançam em cada esquina e viela.
Dadas as proporções, os contextos, as posicionalidades e as questões de autoria, o livro me remete um pouco a Becos da Memória, de Conceição Evaristo.
Aqui, as construções da linguagem vão criando um quebra-cabeça de várias tonalidades e visões que tentam escapar dos maniqueísmos para mostrar uma cosmovisão cheia de camadas que me alegra muitíssimo.
Escrita, memória e edição
Narrado primordialmente por Qüity e vez por outra com interferências de Cléo, Nossa Senhora do Barraco nos mostra o tempo inteiro o desejo das protagonistas em deixar registrado todo o vivido por elas.
Fugitivas e atravessas por tragédias, marcadas por memórias dilacerantes, a necessidade de dizer é uma possibilidade de existência e resistência para as duas no sentido de eternizar um contra-discurso que escape da violência que viveram.
Especialmente, para Qüity, vemos um projeto de reconstrução de si mesma. Na medida em conta sua chegada ao território periférico e o que encontra por lá, seu desejo de estar perto de Cleópatra para entrevistá-la, o fascínio por sua maneira apaixonada com que lida com a dura realidade e a santidade que lhe alcançou, a narradora passa a delinear sua própria trajetória.
E quanto mais ela se aventura para dentro da favela, mais ela se reconhece na dialética entre amor e morte, coletividade e perda, pertencimento e desterro, dando espaço para as mais diversas sensações.
Gabriela é especialmente brilhante ao construir as relações que flanam nos limites, muitas vezes da crueza, que desnudam precarizações na mesma medida que evidenciam como é possível construir raízes sólidas e fortalecimento.
Nossa senhora do barraco é uma ode à contemporaneidade e toda a sua fluidez e cresce todas as vezes em que mostra as contradições humanas que se constroem nas relações como algo potente subversivo.
É belíssimo ver como como Qüity e Cléo dão ritmo aos acontecimentos, quase como se estivesse antecipando a composição de uma Cúmbia ou propondo a excentricidade pulsante de uma novela mexicana cercada de tragédias.
Particularmente, gosto como Gabriela constrói esse casal de protagonistas que se surpreende com a emergência de um amor que nasce dos escombros e da morte. No entanto, a relação mais potente que elas se deixam ter é mesmo com Kevin.
Editando os acontecimentos para criar o próprio livro que nos é apresentado, Nossa Senhora do Barraco acena para a metalinguagem e tem plot twists incríveis.
É uma das leituras mais legais, poderosas e ousadas que li nos últimos meses. Cléo entra para a minha lista de protagonistas inesquecíveis com toda a sua capacidade de se reinventar, ainda que atravessada e mostrado a nós pelo olhar quase febril de Qüity.
Parabéns para Moinhos por, mais uma vez, trazer a literatura de Gabriela Cabezón Cámara para o Brasil. A curadoria segue impecável e as latinas surpreendentes. Que parceria arrebatadora. Um match, um beat de batida perfeita.
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⚡ Raio-X
Escritora: Gabriela Cabezón Cámara
Editora: Moinhos
Tradutora: Silvia Massimini Félix
🌸📚 Sobre a escritora
(adaptado do site da Moinhos)
Gabriela Cabezón Cámara é argentina de Buenos Aires. Jornalista, publicou diversos romances e foi finalista de prêmios como o Prêmio Memorial Silverio Cañada, Livro da Rolling Stone Argentina de 2009 e o International Booker Prize 2020. É também uma das fundadores do NiUnaMenos, importante movimento feminista que começou na Argentina e possui uma importância enorme na luta contra a violência de gênero na América Latina. Tem publicado no Brasil As aventuras de China Iron e Nossa Senhora do Barraco, ambos pela Moinhos.
☠️💜 Corpa de dicas e ideias
• As aventuras de China Iron – Resenha
• Uma pequena entrevista com Gabriela Cabezón Cámara
• Essa resenha bonita de Nossa senhora do barraco escrita pelo Lendoarte no perfil da Moinhos
• Vou indicar novamente o perfil Latina Leitura do Vini, porque sou apaixonada pelo trabalho dele
• E o incrível universo da Latinambiente, minha amiga Ana Luiza, que sabe todas as dicas legais de música
• e divulgar esse curso lindo da Carol Casatti - Toni Morrison: diálogos entre leitura e escrevivência
Nos vemos na próxima! Gracias por todo!
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amei as indicaçoes e o review do livrooo