Fúria e delírio na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai
Sobre Fúria de Inverno, de Perla Suez
Olá, queridos amores da Vértebra Latina!
Hoje vamos conversar sobre como viajar também e escrever. Desde os grandes contadores da humanidade até as crônicas contemporâneas: deslocamento, despertencimento, e tensões entre a ser ou não estrangeiro povoam o imaginário das sociedades. Para ilustrar um pouco conto como chegamos ao livro de hoje, Fúria de Inverno da Perla Suez, e a fuga pelo sul da América do Sul empreendida por Luque, um cara bastante complexo.
Na corpa de hoje eu trouxe algumas dicas de livros que tratam de viagem, além, é claro, de outras questões sobre o tema. Eu sou a Pilar Bu, criadora e curadora da Vértebra Latina.
Vem cá, me dá tua mão e vamos mergulhar juntos!
Viajar é preciso
A newsletter de hoje é uma ideia que surgiu lá no ano passado. Alguma seguidora da Vértebra no Instagram me disse algo do tipo: você podia falar um pouco mais de livros que tratem de viagem, né? Eu realmente elaborei muito o texto que trouxe pra vocês hoje. De início, pensei em algo focado apenas em road trips, esses romances de viagens de estrada que foram reatualizados e eternizados pela geração beat e sempre me causaram fascínio.
Depois, eu achei que era bacana pensar também nesses deslocamentos, em que as pessoas, longe de casa, são estrangeiras e muitas vezes estão desamparadas. Eu nunca senti que tinha um lugar no mundo, já me mudei muito e admito que adoro um movimento. Por isso, ou por insistência, hoje eu brinco que sou do sul do equador, já que essas linhas imaginárias insistem em dinamizar tudo.
Fato é que para além de cartografias cartesianas, a dialética entre pertencimento e desterro é instrumento muito forte na literatura e revela, essas camadas dos avessos, daquilo que as pessoas não querem dizer ou tem medo. Ser estrangeiro no próprio país, migrante ou outsider, é uma dolorosa caminhada de insílio, mas o exílio também dói.
Na América Latina, esse tipo de narrativa que traz a viagem no bojo do texto, e não como mera coadjuvante, ganha novas tonalidades para mostrar as singularidades do continente profundo, que escapa das capitais badaladas ou viaja para outros países e mostra novas cores, sob esse olhar e perspectiva da latinoamérica que se atravessa por disputas ditatoriais, coloniais, de gênero e suas fraturas.
Fuga e fúria
Esse ano, a Vértebra Latina estabeleceu uma deliciosa parceria com a editora Arte & Letra e eu tou real emocionada com tudo isso. Em janeiro, recebi um pacotaço cheio de livros, lindos para ler e fiquei muito impressionada com a qualidade editorial e estética. Escolhi começar por Fúria de Inverno porque a capa me chamou muitíssimo a atenção – gente, sério, a tiragem é escrita à mão e eu fiquei muito apaixonada -, além disso, uma parte da sinopse me fez abrir o livro na hora:
“Luque está fugindo, quer escapar da sua cidade, sua casa, seu passado e suas lembranças. Mas seu passado é voraz, astuto e espreita em cada nova esquina”
Perla Suez
Como vocês podem ver, tudo indica que estamos diante de um triller do início ao fim. Na verdade, não é bem assim, porque Perla Suez compõe uma sinfonia bastante bonita em que ora acelera, ora retarda a narrativa, então, dá um pouco de espaço pra gente compreender os meandros do texto e sentir o peso das escolhas e das tragédias de Luque. E eu achei isso bem inteligente.
Fato é que o protagonista está em fuga. Ele sai da Argentina e vai para o Paraguai sempre alerta e percebendo tudo que o cerca. O tempo todo nós sabemos que ele quer muito esquecer do passado, mas o passado é tanto sua história quanto seu algoz que escancara os dentes.
Perla, aos poucos, nos vai revelando os traumas de infância deste homem e eu achei de muita sensibilidade a maneira como ela constrói isso. Essa criança que é uma sobrevivente, mas se torna um adulto cheio de questões problemáticas, como a dificuldade de se relacionar com os outros, o caráter duvidoso e essa desconfiança do mundo. A perda precoce da mãe e os adoecimentos do pai fazem com que ele precise entender muito rápido que está sozinho, que é preciso crescer e ele tem que se movimentar.
O livro é bastante curto, como um punch mesmo. Dividido em três capítulos, em que a maior parte da história se passa quando ele está morando no Paraguai, vemos uma narrativa cíclica, em que o deslocamento o faz voltar para o mesmo lugar de onde saiu – não apenas geográfico - , mas ele não voltou igual. A cada cidade em que encontramos Luque ele é uma pessoa diferente, tentando lidar com dilemas, barreiras e desafios diversos, ainda que eles se entrelacem pelo fio narrativo de contar a história desse homem.
Essa fuga constante de segredos que precisam ser soterrados se ele quer suportar a própria vida faz com que a calmaria nunca seja uma realidade dada para o personagem e os que estão à sua volta. Por mais que ele se fixe, se estabeleça, tudo pode ser implodido e mudado a qualquer momento.
Trauma e psicodelia
Conversei com algumas pessoas sobre o livro e todas elas se impressionam muito com o final de Fúria de Inverno. Para ser bem sincera, em um dado momento do livro eu fiquei me perguntando o que Perla queria com aquele marasmo e a tentativa de construção de uma vida que se assenta, mas então o livro entra numa espiral de psicodelia e reviravolta que torna os desfechos muito intensos, mostrando as nuances narrativas. E quando eu falo sobre psicodelia não estou falando de falta de verossimilhança ou que esteja descolado com a realidade, muito pelo contrário, mas do poder da escritora de mudar o tom do texto e instigar o leitor com uma proposta tão acelerada que periga perder o ar.
Eu, como a pessoa imagética que sou, me intriguei com esses deslocamentos do Luque e fui fazendo um mapa mental. Porque estamos falando de uma grande distância entre Buenos Aires e Assunção, mas o que me deixou muito encantada foi ver realmente uma narrativa cravada na tríplice fronteira, no sul do sul, entre o Paraguai (Cidade del Leste), Argentina e o Brasil. As tensões, os embates, os desejos e os conflitos.
Ali, onde tudo aparentemente causa estranhamento e dúvida, Luque erguer sua nova vida. E Perla nos traz elementos super importantes que se misturam às pessoas: a poeira vermelha do Atacama que cobre a Argentina e o Paraguai, as águas marrons do Rio Paraná que corta como uma fenda as existências, a ilha de vitórias-régias trazidas pela correnteza. Tudo ali faz um desenho muito interessante sobre essa vida na fronteira que eu, particularmente, nunca tinha experimentado dessa forma na literatura. Achei que tudo isso traz vida e beleza para uma realidade muito dura e que está bem longe de ser delicada.
Outra sacada muito boa da Perla são as personagens Isabel e Rita. Isabel, interesse amoroso do protagonista, é uma menina violentada, entregue pelo pai a homens adultos para ser explorada. O livro não massageia o leitor e escancara mesmo as contradições, sem abrir espaço para romantizações rasas. Ela é alguém que conserva em si meninas de quem as infâncias são roubas e para quem só resta pensar no hoje. No fim, eu a vi como uma mulher que precisa ser aguerrida, mesmo que esteja presa em esquemas de gênero perversos.
Rita, por sua vez, me intrigou muito. A maneira como ela revela certa complexidade em suas múltiplas facetas, seja como líder ou avó, nos mostra que o texto parece ter uma intenção muito forte de não ser maniqueísta. As pessoas podem ser más, e ter milhões de defeitos, mas em algum momento, mostram suas fragilidades, mesmo que isso não faça a menor diferença para o resultado ao final. Crucial para a trama, Rita se descortina para o leitor em toda a sua ousadia.
E trazer mulheres que não são rasadas, mas desejantes, ainda que elas não sejam o foco principal da narrativa, me deixa bastante contente por ver que a condição feminina se revela com a complexidade e os desafios demandados pela sociedade.
A ideia desse homem cruzando a América do Sul em busca de novas oportunidades me trouxe essa sensação de que esse é um livro pitada de ousadia e é diferente de muito li nos últimos tempos, e foi realmente muito bacana encontrar esse texto. Aliás, eu acho toda a construção de Fúria de Inverno - as das personagens, as escolhas narrativas, as reviravoltas e as histórias que se tecem dentro da história – me instigaram num outro lugar ao qual eu estou acostumada e isso me surpreendeu.
Gostei dessa narrativa de fronteira que se metamorfoseia e nada é estático. Desse jogo de ilusão em que não há como a vida ser simples e pacata. Não há lugar seguro. Não há lugar no mundo. Tudo muda. Tudo é cambiante. É um livro bem interessante. Leiam.
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⚡ Raio-X
Escritora: Fúria de Inverno
Editora: Arte & Letra
Tradutora: Nylcéa Pedra
🌸📚 Sobre a escritora 🇦🇷
Perla Suez é argentina de Córdoba. Escritora, ensaísta e tradutora. Venceu o Prêmio Sor Juana Inés de La Cruz por O país do diabo (ainda não publicado no Brasil). Fundou o Centro de Difusión e Investigación de Literatura Infantil y Juvenil e o dirigiu entre 1983 e 1990. Seu único livro publicado no Brasil é Fúria de Inverno, pela Arte & Letra.
Vem aí: Viajar é preciso - Indicações
Essa semana eu parei a programação normal da Vértebra Latina no Instagram para indicar livros de escritores palestinos ou com ascendência palestina 🇵🇸, mas na terça sai a lista de indicações de livros que tratam de viagens. Vou deixar um spoiler por aqui:
☠️💜 Corpa de dicas e ideias
• Psicodelia lisérgica na Alemanha de Quarto Alemão, da Carla Maliandi, traduzido pelo Sérgio Karam, que saiu pela Moinhos.
• Ditadura e trauma em Um, dois e já, da Inês Bortagaray, que saiu pela Cosac & Naif.
• Diáspora e decolonialidade no poemário Um corpo negro, da Lubi Prates, que saiu pela nosotros editorial e agora é vendido pela nossa editora. Inclusive escrevi um texto sobre ele aqui .
• Latina Leitura: Confira o conteúdo arrasador do Vini que mescla história e literatura.
• A latinohablante está fazendo um intercâmbio em Córdoba e eu acho que vc deveria seguir tudo no Instagram.
• Vibe de dois mostra um casal de brasileiros numa Kombi rumo ao Alasca – eles saíra do Ushuaia.
Nos vemos na próxima! Gracias por todo!
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