Velhice, memória e loucura de mulheres latinas
O arrebatamento na leitura potente de Os continentes de dentro, de María Elena Morán
Olá, queridos amores da Vértebra Latina!
Memória é realmente um tema que eu tenho perseguido com muito afinco e dedicação, mas mais do que isso me interessam outras camadas que mostrem as complexidades da escrita de mulheres latino-americanas e caribenhas. É a segunda vez que eu lei Os continentes de dentro, da María Helena Morán, num curto espaço de tempo e livro bom é esse que a gente não cansa e sempre revisita. Chegar à Venezuela assim é um baita privilégio.
Na corpa de hoje eu trouxe algumas brisas sobre loucura, lembrança, e esquecimento.
Vem cá, me dá tua mão e vamos mergulhar juntos!
Chegando no continente
Ano passado, quando a María Elena Morán entrou em contato comigo e me mandou o livro, eu fiquei muito curiosa para ler Os continentes de dentro porque, entre outras coisas, o livro tinha saído pela Zouk, uma editora que publica livros de teoria maravilhosos, mas também o que me chamou a atenção foi o texto da contracapa:
Como se odeia a uma mãe? Da mesma forma que se odeia uma filha. E essa forma é nenhuma, porque, dentro do suposto ódio, o que há é carência e anseio; umas vontades incomensuráveis de reparação. A doença de Aída não era o encantamento nem a percepção aguçada nem a criatividade em explosão.
María Elena Morán
Além disso, me deixou chocada que uma escritora tão querida como ela me alcançasse. Li e eu entendi que o livro precisava viver um pouco dentro de mim até que fosse a hora de escrever sobre ele. Boa parte da minha adolescência e início da vida adulta eu fui chamada de louca. Assim como muitas mulheres, eu me sentia deslocada, sem ter com quem conversar sobre assuntos como política, gênero e outras esquisitices.
Dividia meu tempo entre querer flertar com todo mundo e me afundar em pilhas de livros e problematizar coisas que hoje, somente hoje, eu sei o nome. Louca, descontrolada, estressada, exagerada, parece que as mulheres estão sempre muito desencaixadas e comigo não era diferente.
No fim de 2023, alguém que gosto muito começou uma conversa dizendo: você sempre foi chamada de louca e bruxa por não aceitar que as coisas fossem tidas como naturalmente desiguais: assuma a sua loucura, esquece o que dizem, acredita em você!
E foi esse encontro de muita potência que me deu a certeza de que a leitura de Os continentes de dentro deveria acontecer novamente no início de 2024. Talvez como um mantra ou uma invocação: eu sabia que estava finalmente pronta pra falar desse livro.
Enquanto o mundo nos quer empapuçadas de dor e controle, é melhor mesmo rasgar os manuais e fazer tudo diferente.
Dentro e fora: cartografias femininas
Sofía amava muito a sua avó, Aída, e tinha conflitos intensos com sua mãe Taís. Talvez por isso, ou na base dessas relações conturbadas, ela recebe com muita dor a ausência de Aída, escanteada e alijada do convívio da família e enviada a um hospital psiquiátrico por sua aparente loucura.
Os continentes de dentro nos mostra a busca desta agora mulher pelos rastros e vestígios da existência e da memória da avó. A narrativa, belissimamente construída por María Elena Morán, nos leva pelos meandros desta história que também é memória, desejo de permanência e busca identitária, já que Sofía sabe que para saber-se a si é preciso encontrar a outra.
No entanto, a grande sacada da escritora é tentar desvendar esse mistério: quem é essa outra? A mãe, a avó, as companheiras de Aída, ou a própria Sofía? Construindo cartografias de afeto em que tudo importa para compor um mosaico de existência, María Elena Morán entrega ao leitor sensibilidade, cuidado e olhares múltiplos sobre a condição feminina que se desdobra entre “eu” e “nós”.
Aída tão presente em sua ausência. Tão materializada no anseio. De tão mirabolantes suas histórias e por isso tão coerente. E, bem, livro que fala da literatura como personagem, não mero veículo, sempre me ganha por flertar com a metalinguagem em certos momentos.
Me impressionou muito a composição do texto em si. Não é apenas quase lírico no conteúdo, a linguagem e a estética também pulsam. Assim, enquanto encontramos a narrativa de Sofía sobre a sua vida na Ilha de Salos, emergem cartas e textos em formato de diário escritos por Aída.
Aliás, Salos, assim como em outros livros, é uma personagem e não uma coadjuvante, se reinventa, metamorfoseia, engole, vomita, ama e maltrata quem vive ali na mesma medida. É quase um enigma, uma esfinge, uma sala imprecisa que se adequa a quem depender dela.
Os atravessamentos do passado no presente mostram para o leitor um engenhoso encontro entre as duas, mesmo que distanciadas no tempo. Lembrar, esquecer e rememorar se tornam cada vez mais potentes no livro. A memória, essa necessidade de não deixar que o tempo destrua as existências, parece uma preocupação das mulheres, que tentam, a todo custo mostrar que não é possível rasuram a condição de sujeito que elas reivindicam.
É especialmente brilhante que María Elena traga para o centro da ação aquelas cuja sanidade é questionada, já que durante séculos a histeria e o enlouquecimento feminino foram usados como estratégia para encarcerar mulheres que eram tidas como insubmissas. E o texto nos mostra como essa tecnologia funciona de maneira perversa na nossa sociedade.
Flanando entre a dúvida e a certeza, Sofía encontra em Adela, Rita, Luz Lúcia, Ricarda e tantas outras o afeto que lhe faltava. Sob a orquestra de Aída, os continentes de fora e os continentes de dentro se revelam ao leitor de um jeito tão tão verossimilhante que fica difícil não se emocionar com esse livro.
Experimentar uma narrativa tão atravessada pela fratura de mulheres não me deixou igualmente dolorida, mas encontrada. Como se ao elaborar a trama, a escritora tivesse lido um pouco de cada uma de nós para compor esse tecido.
De alguma forma, aparecem também as disputas geracionais, tão estimuladas pela misoginia estrutural, pelo mito da beleza, as subalternizações impostas às mulheres. Certeza mesmo é de que não há certeza quando o horror se avizinha. Mesmo ali, onde o mundo desmorona, qualquer tentativa de regrar a realidade pode ser uma nova clausura, qualquer tentativa de julgar pode ser uma ruína. E até na ruína é possível encontrar profundidade e sentimento.
Que livro bonito. Que livro bem escrito, bem pensado. Que aula!
Não há mulheres certas e nem erradas em Os continentes de dentro, há mulheres, todas vítimas das violências de gênero, todas cúmplices da mesma ousadia de querer ser, todas humanas demasiadamente humanas, sãs demasiadamente sãs, loucas demasiadamente loucas a ponto de nos fazer acreditar em sereias.
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⚡ Raio-X
Escritora: Os continentes de dentro
Editora: Zouk
🌸📚 Sobre a escritora 🇻🇪🇧🇷
María Elena Morán é venezuelana de Maracaibo radicada no Brasil. Graduada em Comunicação Social na Universidad del Zulia (2007), Venezuela, mestra e doutora pela PUCRS. Tem contos publicados em antologias Melhor não abrir essa gaveta (Terceiro Selo, 2015), Fake Fiction (Dublinense, 2020), Acervo de Ficções (Zouk, 2021) y Não escrevo porque (EdiPUCRS, 2021), entre várias outras. Tem publicado no Brasil Os continentes de dentro, pela Zouk. Ganhou o prêmio Café Gijón 2022, com seu romance Volver a cuándo, ainda inédito no país.
☠️💜 Corpa de dicas e ideias
Hoje eu estou toda professorinha e só vou indicar textos bacanas de teoria, me deixa, eu tou empolgada.
Para entender sobre histeria feminina, o livro Histórias histéricas, da Elaine Showalter me parece uma boa pedida
Para entender sobre memória, é Aleida Assmann quem nos dá aulas em Espaços de recordação
Eu amo a teoria da cartografia gendrada da Sandra Goulart que você encontra em Cartografias Contemporâneas
Falando sobre questões da velhice das mulheres em A velhice, de Simone de Beauvoir
E para entender Memória na América Latina, indico os textos de Ochy Curiel y Yuderkys Espinosa Miñoso que estão neste livro: Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais
Nos vemos na próxima! Gracias por todo!
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Eu estou encantada por esse livro! Preciso ler urgentemente! Deve ser lindo, mas sobretudo, linda a sua apreciação sobre o livro! Gratidão por tanto!
preciso ler esse livro pra ontem! pesquiso literatura de autoras latino americanas e amo suas indicações. obrigada pela lista de referências no final do texto 🖤